450 anos em 90 minutos
Poucas cidades têm tanta história para contar quanto São Sebastião do Rio de Janeiro. E pouquíssimas poderiam contar seu passado tendo apenas como recorte questões políticas, sociológicas, culturais, artísticas, esportivas ou econômicas da mesma forma que a Cidade Maravilhosa. De todas as opções possíveis, foi o recorte urbano, com a histórica arquitetônica e de expansão urbanística, que a juiz-forana Juliana de Carvalho escolheu para produzir e dirigir o documentário “São Sebastião do Rio de Janeiro – A formação de uma cidade”, que estreia em todo o país no próximo dia 26 – inclusive em Juiz de Fora. Com cerca de 90 minutos de duração, o longa refaz a trajetória da primeira capital da República a partir da chegada dos portugueses e franceses, no início do século XVI, até sua fundação oficial, em 1º de março de 1565, e todas as transformações importantes – para o bem e para o mal – pelas quais a capital fluminense passou em seus 451 anos de existência. O longa, que já foi apresentado em 2015 no Festival do Rio e Arquivo Nacional, chega a quatro salas em três cidades – além de Juiz de Fora (no Cine Palace, com a distribuição gratuita de 200 entradas nas universidades), a capital fluminense e São Paulo. Também já foi fechada a exibição no Canal Brasil e no serviço de streaming Now.
“Moro no Rio há quase 30 anos, e desde a época em que trabalhava para a TVE já tinha contato com locais que normalmente não eram totalmente turísticos, como o subúrbio, o Rio de Janeiro fabril, industrial”, conta Juliana. “Observava, ainda, a beleza das igrejas, e tudo isso me levou a ter essa vontade de fazer o filme, ainda em 2012. O (artista plástico) Paulo Simões também ajudou nessa ideia. Trabalho com documentários, e ele me perguntou por que não fazia um sobre a cidade.”
Com a vontade criando raízes, foi hora de definir o conceito do documentário. “Resolvi desenvolver o documentário com um viés sobre o desenvolvimento urbano da cidade por ser um assunto pouco falado. A chamada ‘carioquice’ e o próprio carioca sempre ficaram maiores que a cidade. Você sempre fala da cultura, do espírito, do estilo de vida e, às vezes, fala-se pouco que essa geografia, essa natureza são fundamentais para a formação desse estilo, mesmo para quem não nasceu aqui. A cidade é feita de espaços públicos que vão além das moradias. São ruas, parques, praças. O Rio de Janeiro, nesse filme, é o personagem, e não o homem que mora nela.”
O volume impressionante de informações reunidas para o filme rendeu um outro produto, um livro de mesmo nome lançado em 2014 com fotos de Ivo Gonzalez e texto de Carlos Haag – este, responsável pela mesma função no documentário. “Foi um jeito que encontramos para nos aprofundar no material, e o livro ainda serviu de base para escrevermos, mais à frente, o roteiro”, conta a cineasta. “Preparamos agora uma exposição com todo esse conteúdo, que deve ser montada na Casa do Brasil em Paris. Esperamos que seja ainda este ano, ou no início do próximo, tudo depende da captação de recursos.”
Da França Antártica ao Sambódromo
As imagens mais recentes do documentário foram registradas em maio de 2014, pouco antes da Copa do Mundo. Mas a pesquisa realizada durante mais de um ano ajudou a incrementar a história visual da produção, com o acréscimo de ilustrações, filmes e fotos raras obtidas em cerca de 30 instituições do país e no exterior. O longa tem, ainda, reproduções em animação 3D da cidade para mostrar como era o povoado, por exemplo, logo após a expulsão dos franceses, com as casas, fortificações e igrejas erguendo-se, basicamente, entre quatro morros existentes no que hoje é o Centro do Rio. A produção conta, ainda, com depoimentos e entrevistas de personalidades de diversos setores, do urbanismo à cultura, entre eles Milton Teixeira, Ruy Castro, Sergio Besserman e Carlos Fernando de Andrade.
À medida em que foi crescendo, a Cidade Maravilhosa passou por mudanças urbanísticas em momentos marcantes: a elevação a capital da colônia de Portugal, no século XVIII; a chegada da Coroa portuguesa, em 1808; a abertura das avenidas Central (atual Rio Branco) e Presidente Vargas; a derrubada do Monte do Castelo; a criação do Aterro do Flamengo; e o Sambódromo. Apesar dos erros e acertos, o documentário não busca apontar dedos recriminadores ou de louvação. “Nós apenas contamos a história. O Rio é uma cidade em que muitos prefeitos foram engenheiros, um local com pouca área passível de construção, pouco acesso à água. Tivemos grandes acertos, mas outros casos foram de mera especulação imobiliária, como foi o caso de Copacabana. Existe a força do capital pressionando o tempo todo, e é o que acontece hoje com a Barra de Guaratiba, por exemplo. Esse crescimento, muitas vezes de forma desordenada, é uma questão grave.”
Com tanta autoridade dando o seu “toque pessoal” à cidade, Juliana não pensa duas vezes em eleger o mais cruel pecado capital urbanístico cometido contra o Rio de Janeiro: o desmonte do Morro do Castelo. “Foi lá que a cidade se estabeleceu inicialmente e era um lugar belíssimo, com a vista que era mais próxima à Baía”, lamenta. Ao mesmo tempo, ela comemora a derrubada dos viadutos da Perimetral, que degradou a região onde foram construídos, que agora é revitalizada.
(Re)descobertas
O período de pesquisas e filmagens serviu para Juliana descobrir ou redescobrir pontos da cidade que muitas vezes são pouco conhecidos. “Sabe-se muito pouco da arte barroca no Rio, que é mais lembrada pelas Minas Gerais e o Nordeste. E temos um acervo sacro riquíssimo. Você tem a Igreja de São Francisco da Penitência, pouco conhecida, que estava pintada de branco e se descobriu que era revestida de ouro em seu interior quando parte do reboco caiu”, comenta.
O documentário mostra, ainda, que certas coisas nunca mudam na cidade, e a falta de planejamento é uma delas – como pode ser visto na história da construção do Copacabana Palace, previsto para ser inaugurado nas festividades do centenário da Independência (1922) e que só abriu as portas no ano seguinte. Muito parecido, enfim, com o que se viu na Copa do Mundo e, agora, com os preparativos para as Olimpíadas. “É um problema brasileiro, talvez, essa falta de planejamento, de não fazer as coisas com antecedência, em especial nas construções. Vai tudo a toque de caixa”, critica.
Ao encerrar a entrevista, duas perguntas: como ela imagina que será o Rio daqui a 450 anos? E o que os moradores do Rio 900 Anos pensariam da cidade retratada em seu filme? “Acho que a cidade não vai existir daqui a 450 anos. Ela é fadada a ficar submersa, acredito que o Rio vai sofrer muito com as mudanças climáticas. Muitas partes vão desaparecer. Acho que num período mais próximo, de 50 anos, poderão assistir a esse filme com a orla se modificando e se transformando em cinturões verdes, com a cidade mais para o interior a fim de conter essa elevação dos mares. Daqui a 450 anos espero, pelo menos, que o filme tenha sobrevivido de alguma forma, nos formatos de mídia que existirem.”