Retratos de outras nobrezas
Nenhum retrato é um registro gratuito. De alegoria da morte, documentando a vida, para o reconhecimento de poder, os retratos tornaram-se moeda de afirmações. No Renascimento, entre os séculos XV e XVI, artistas como Leonardo Da Vinci, Michelangelo e Rafael retratavam nobres confirmando-lhes o status que exerciam sobre toda a sociedade. No Barroco, do século XVII ao XVIII, as telas só confirmavam o que o poder econômico formulava. A partir do século XIX, os retratos ganharam outras expressões, sentidos, linguagens e fins. A “democratização”, porém, surgiu, apenas, nos flashes. Contudo, no imaginário coletivo, os retratos permanecem burgueses, luxuosos e, sobretudo, brancos. Da mesma forma como são as galerias de arte, os museus e a prática da arte. A história, de alguma forma, engole as margens, conformando uma cena homogênea. Em alguns momentos, então, é urgente levantar as mãos e dizer: “Presente!”. “Qual é o pente que te penteia?”, exposição em cartaz no Espaço Cultural Correios, até 16 de janeiro, é, assim, um grito de ocupação.
Revelando o belo para falar do feio, a mostra reúne 28 retratos de dez das 11 integrantes do Candaces, grupo de mulheres negras que discute o racismo na sociedade brasileira e juiz-forana, bem como as estratégias para a valorização da cultura afro-descendente e inserção do negro numa sociedade mais democrática. Instrumentos como a chapinha e o pente quente, além de químicos como o “Henê” e a “Guanidina”, mostram as “quase torturas” a que são submetidas as negras na busca por cabelos lisos. Remontando os retratos clássicos, tanto pela iluminação quanto pelas poses – que evocam a regra dos terços, com os olhos na porção superior da tela -, as imagens desnudam outro universo, de orgulhosas naturalidades.
“Todas elas usam o cabelo como questão política, além da saúde e da praticidade. O cabelo é uma postura, não apenas uma estética”, defende o curador da exposição Ramsés Albertoni. “Uma das marcas de retirada da identidade do negro é o cabelo. Em algumas tribos africanas, ele é valorizado como símbolo de nobreza. Cabelo deve ser escolha e não imposição. E não é moda optar pelo black ou pelo turbante. Essa exposição, porém, vai além do estético. Os quadros são bonitos, mas vão além e perguntam: Que mundo é esse? Quando mulheres negras de cabelo crespo estão sendo retratadas na arte sem terem sido escravizadas? O cabelo, aqui, é um convite às questões mais profundas.”
Vestidas como no cotidiano, e com as madeixas do dia a dia, Alline Pereira, Fabiana Gomes de Souza, Geovana Castro, Giane Elisa Sales de Almeida, Gilmara Mariosa, Jéssica Martins, Jussara Alves, Maria Luiza Igino Evaristo, Selmara de Castro Balbino e Sheila Gonçalves se apresentam para dizer de um pente menos cruel. “Nosso cabelo natural, mais próximo da característica crespa, é um ato de ir contra o estabelecido”, pontua Maria Luiza. E onde está o estabelecido? Em histórias de um racismo sutil e naturalizado nos dias. Como há alguns dias, quando as Candaces estavam diante de um hotel e uma senhora disse que parecia ser dia de festa, com todas arrumadinhas. “Nós andamos sempre arrumadinhas assim”, respondeu Maria Luiza. Como na formatura de outra, que a família impôs sua presença ao alisamento do cabelo da filha. Como no dia em que o grupo foi a um bom restaurante de Belo Horizonte e perguntaram a elas se eram do Brasil.
Não é rancor, é consciência
“Trabalhar a estética é uma das vias, mas não pode ser a única”, comenta Maria Luiza, destacando que a militância extrapola novembro e dura todos os 12 meses do ano. “Nos unimos pela afetividade. Em nossas conversas, mesmo informalmente, sempre percebíamos que algumas questões eram recorrentes: a mulher negra no mercado de trabalho, na vida afetiva, a violência. Resolvemos formar o grupo para discutir o que não tínhamos na faculdade”, conta ela. “Existe outros ativismos que não o de virar laje, o de mutirão solidário. As Candaces são reflexivas”, explica Ramsés Albertoni.
Para o curador, apresentar fotos que destacam a beleza e reafirmam as raízes serve como ferramenta de inserção. “Porque uma pessoa, que trabalhou a vida inteira no Centro da cidade como empregada doméstica só foi a um vernissage aos 63 anos? Isso passa pela representação e pela representatividade”, diz, referindo-se à sogra. “Ocupar esse espaço é uma mudança, mas que quase se configura como exceção diante da regra. Muitos dos negros que cresceram comigo, no meu bairro, ainda estão no subemprego, tentando modificar”, aponta Maria Luiza. “A ideia é ajudar para que, no futuro, exposições como essa não sejam mais necessárias”, acrescenta Ramsés.
E não se trata de uma ditadura do cabelo crespo. Não há discursos radicais no espaço das sensibilidades. “Não chega a ser rancor”, adianta o curador. “A questão é que precisamos construir uma sociedade para todos. Os negros ficaram excluídos por séculos, e, agora, é urgente que conquiste espaços outros”, comenta, chamando atenção paras os retratos das “orixazinhas”, Luanda, filha de Gilmara, e Niara e Paola, filhas de Jussara, representando esses dias que podem ser menos duros. Novos retratos podem ser pintados. “Quando os negros começam a sair, estudar, cuidar da saúde, da beleza, transformam as novas gerações. Todas as raças são belas, mas a algumas isso não foi permitido”, critica. “As mesmas palavras que servem para afirmar também podem negar. Quando a música ‘Nega do cabelo duro’, de David Nasser e Rubens Soares, foi feita, estava desqualificando e agora estamos ressignificando. Qual é o pente que te penteia?”
QUAL É O PENTE
QUE TE PENTEIA?
De segunda a sexta-feira, das 10h às 18h, e sábados das 10h às 14h. Até 16 de janeiro
Espaço Cultural Correios
Juiz de Fora
(Rua Marechal Deodoro 470)