De interior para interior
O sistema é bruto. O café é amargo. Abandonada a ideia de uma Minas romântica, com belos campos e uma chaleira sempre no fogo, surge um filme político, que, mais do que apresentar as cruezas do interior, propõe discutir as opressões nossas de cada dia. “Resguardo”, um dos mais aplaudidos das mostras regionais, no último domingo, da 19ª Mostra de Cinema de Tiradentes, retira a cor para falar das muitas nuances que se escondem numa árida comunidade de Sarandira, Zona Rural de Juiz de Fora.
Dirigido por Francisco Franco e Luiz Fernando Priamo, com incentivo da Lei Murilo Mendes, o curta-metragem narra a história, em P&B e com uma divisão em capítulos, de uma família entre o desacerto e o infortúnio da roça. Inicialmente, o filme abordaria o trabalho de barraqueiros de torneios leiteiros do interior do estado. Numa dessas andanças, com parte do material rodado, surge Terezinha, pedindo material escolar para a filha.
“Não queríamos, mesmo na antiga proposta, exaltar a tradição mineira. Todo filme rural tem alguém passando um cafezinho. E isso é uma bosta. Buscávamos uma visão diferente dessa. É muita dor, muita sujeira. A vida no campo é linda só para os que têm dinheiro”, pontua Franco. No documentário, três gerações – a matriarca Melentina, a filha Terezinha e a neta Waldivina -, representam vivências de abandono e resignação.
“Queríamos o contraste”, acentua Priamo. “O filme é político”, completa Franco. “É uma visão positiva ou negativa do campo? É uma poesia”, acrescenta. Uma mulher e a morte de alguns de seus 14 filhos, uma mulher e a violência sexual, uma mulher (em crescimento) e o desejo pelo urbano. Três mulheres a representarem uma casa forte. Nas palavras do diretor Franco: “O sistema é bruto”.
De JF, com orgulho
Tiradentes é a quarta parada de “Resguardo”, que passou por Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Piauí. Quarta e importante estação, já que o filme foi exibido junto de outras sete produções juiz-foranas. Marlene, a dona do forró no Mariano Procópio, arrancou gargalhadas e aplausos da plateia de 600 espectadores, lotação máxima. O documentário de Jéssica Faria Ribeiro, a ficção “Cabrito”, de Luciano Azevedo, bem como os outros curtas, demonstram um bom momento para a cena local.
“Estamos trabalhando na raça, com qualidade técnica e evoluindo na linguagem”, comenta Francisco Franco, que se prepara para lançar, com Diego Navarro, seu primeiro longa-metragem, “Os 3 atos de Carlos Adão”, sobre o folclórico artista urbano de São Paulo. Diversa em temáticas, mas homogênea em sofisticação de linguagem, a produção de Juiz de Fora, forte na 19ª Mostra de Cinema de Tiradentes, aponta para um amadurecimento local, conectado com o nacional e universal.
Em comum, os curtas-metragens apresentados na mostra revelam a derivação de duas escolas, a Faculdade de Comunicação Social e o Instituto de Artes e Design da UFJF. Compartilham, ainda, os baixos orçamentos e equipe técnica. “Essa área está levando a cidade para fora, para festivais de outros estados. Precisamos de um incentivo maior, porque audiovisual é outro valor. Envolve equipes muito grandes”, sugere Fernanda Roque, assistente de edição e colorista de “Resguardo”.
“Estamos começando a construir gêneros. Existe a chance de virarmos uma cena”, observa Franco, que reserva as segundas aos projetos autorais e os outros dias aos trabalhos comerciais em sua produtora Inhamis. “É preciso largar a tradição”, diz, certo de que há um contemporâneo em expansão, muito distante do que seria uma “velha guarda”. Como no interior apresentado em seu filme, o hoje do cinema local tem ruídos que merecem atenção. Não merece ficar resguardada.
Que dia ela volta?
Daqui a pouco eu volto, disse a mãe aos dois filhos, Ygor e Rayane, antes de deixá-los na portaria de um prédio em Ipanema, Zona Sul do Rio de Janeiro. Não voltou, e Regina, nome escrito num pedaço de papel, também não queria os meninos em sua casa. Pouco a pouco, a convivência forçada vai se revelando menos incômoda. “Campo Grande”, novo filme de Sandra Kogut, discute o choque de classes, a transformação urbanística recente de um Rio pré-Olimpíadas, e, sobretudo, os abandonos diários.
Regina é uma mãe abandonada pela filha, que decide ficar com o pai após a separação. Ygor e Rayane são filhos abandonados por uma mãe. Ainda que os dramas se assemelhem, o abismo econômico e social os distanciam sobremaneira. Atual, não?! Num momento de Brasil dividido politica e socialmente, “Campo Grande” resulta em fotografia urgente. “Não é só o nome de um lugar, mas o que ele evoca, um espaço de todos os possíveis”, pontua a diretora, em seu terceiro longa-metragem e segundo trabalhando com crianças.
“‘Campo Grande’ é um filme importante. De uma maneira artística, contribuímos com uma discussão relevante. A gente não faz antropologia, a gente faz cinema”, afirma o produtor Flávio R.Tambellini, diretor de “Malu de bicicleta” e “Bufo &Spallanzani”, além de ter produzido, dentre outros, “Cazuza: O tempo não para” e “Eu tu eles”. A relevância da obra, bastante elogiada em sua pré-estreia no último domingo da 19ª Mostra de Cinema de Tiradentes, está em não reduzir, mas alargar as muitas faces de uma moeda.
‘As pessoas são mais complexas’
“Achava que a única maneira de fazer esse filme era entendendo o lado de cada um, sem tomar partido de um personagem. Era importante contar a história sem julgar quem é bom e quem é mal. As pessoas são mais complexas que isso”, defende a diretora, que ao longo da produção vai redimindo seus personagens. As pessoas são resultado dos lugares que as abrigam. Optando por um realismo cru, “Campo Grande” se aproxima dos recentes “O som ao redor”, de Kleber Mendonça Filho, e “Que horas ela volta?”, de Anna Muylaert, questionando a justiça social, mas sem apontar o dedo.
Independente, o filme já tem feito uma longa carreira em festivais e deve chegar aos cinemas em junho, em 30 salas nacionais. O sucesso de bilheteria, segundo o produtor, não é imperativo. “Evidentemente, quando se tem uma produtora, é preciso pensar na sobrevivência dela, mas nossa praia é fazer filmes que fazem pensar e não são muito pequenos. Acredito em filmes independentes que tenham visibilidade”, observa Tambellini. “A busca por bilheteria é ilusória, porque há filmes que levam muita gente para o cinema, mas são descartáveis”, completa.
Para Sandra Kogut, que vem traçando uma trajetória entre o autoral e o comercial, com uma assinatura forte e olhar atento aos dramas existenciais suscitados pela realidade social, a atração está em falar do hoje com sensibilidade. “Gosto de jogar a cena dramática onde tudo está acontecendo. Muitas vezes nem sabíamos quem era do filme ou não”, conta ela, que no set não sabia quem eram os poucos figurantes da produção. Escrito em Berlim e rodado numa Rio de Janeiro caótica, em dias de jogo do Brasil na Copa do Mundo, “Campo Grande” é uma fotografia. E, como tal, mesmo que amarele, será perene.
* O repórter viajou a convite da Mostra de Cinema de Tiradentes