‘Guerreiros são assim’
Em uma pequena copa de azulejos azuis, os integrantes do coletivo Vozes da rua, reunidos em volta de uma mesa para seis lugares com espaço para outras cadeiras, têm em mãos livros e discos distintos. Que relação teria a obra Os condenados da terra, de 1961, de autoria do psiquiatra e ensaísta francês Frantz Fanon, e A guerra não declarada na visão de um favelado, do rapper e ex-líder do Facção Central Eduardo? E qual o diálogo que se estabelece entre Paulo Freire: educar para transformar, da série Almanaque histórico, e a biografia de Pixinguinha, História de um negro chorão? Para Adenilde, Eliane, João Victor, Alexsandro (Mano Zói), Felipe e Marcos, alguns dos membros do coletivo formado no Bairro Santa Cândida, Zona Leste da cidade, esses e outros títulos servem como ferramenta para a compreensão da realidade na qual estão inseridos. Não aceitamos que a violência é só essa da briga de gangue, do assassinato, da polícia esculachando os moradores. Temos outra visão: a violência tem uma origem. O Brasil foi feito sob violações muito grandes. E o Frantz Fanon diz isso, que ela começou com os colonizadores. Para alterar o sistema, esse monstro que nós mesmos criamos, é preciso conhecê-lo. Por isso estudamos, comenta a aposentada e militante do movimento negro Adenilde Petrina, 61 anos.
As memórias individuais que não foram formalizadas nas páginas de um livro mas ganharam a legitimação da comunidade também integram o repertório do grupo, cujos componentes guardam a certeza de que o percurso e a vivência diária se configuram em importante bem simbólico. Dificilmente somos vistos de forma positiva. Temos poetas dentro da comunidade e tivemos uma rádio comunitária de repercussão nacional que virou dissertações de mestrado e teses de doutorado. Temos coisas muito boas para oferecer. Temos os nossos intelectuais orgânicos, da mesma forma que a universidade tem os dela, aponta Adenilde. Só que a academia não sabe dialogar com esses intelectuais do morro, porque nossa fonte de conhecimento é diferente. Eles conhecem sobre nós fazendo pesquisa, lendo livros, e nós conhecemos nossa realidade vivendo. Por isso nossa reflexão é bem diferente. Eles já vêm com juízo de valor, e não temos isso com nossos vizinhos. Temos sabedoria para trocar e estamos de igual para igual. Nós mesmos temos capacidade de fazer interpretações sobre aquilo que vemos e vivemos, completa. Sempre falamos em escrever um livro para registrar a nossa história, a desses nossos intelectuais, e o título seria ‘Guerreiros são assim’.
De olho nas armadilhas
Uma das fundadoras da extinta rádio comunitária Mega FM, que entrou no ar em março de 1997 e que também funcionava em sua casa, Adenilde Petrina viu surgir, ao longo dos anos, diversos intelectuais na periferia da cidade, pessoas que se dividiam entre o trabalho no período do dia e a criação artística na parte da noite. Um cara que escreve um rap lê muitos livros e faz muita análise da realidade na qual está inserido, defende. Vejo que a sociedade vê a periferia como o Frantz Fanon fala: um lugar de gente ruim, um lugar ruim de se viver, um lugar triste, onde a morte persegue a gente e onde paira a desestruturação familiar. A sociedade nos enxerga como se fôssemos refugos, prontos para morrer. Se a gente morre, para a sociedade pouco importa. Morreu um ninguém. Somos, no máximo, uma estatística, lamenta, certa de que é pelo conhecimento que se encontram as formas de dar maior visibilidade a essa periferia que também é literatura nas letras dos raps, música nas bocas dos beatboxs, pintura nas mãos dos grafiteiros e dança nos gestos dos b-boys.
Considerado como o quinto pilar da cultura hip-hop (que agrega o rap, o DJing, o breakdance e o grafite), o conhecimento fez parte da Mega FM e das iniciativas que se sucederam, como a Posse Missionário Antonio Conselheiro, a Posse de Cultura Hip Hop Zumbi dos Palmares (PZP), a banca (espécie de banda na cultura hip-hop) Armadilha do Gueto e sua semente, o coletivo Vozes da rua. Costumo dizer que a ignorância é uma benção. A partir do momento em que você toma consciência do que te afeta cotidianamente e identifica os verdadeiros ‘inimigos’, você passa a perceber que sofre a todo momento. Isso, de certa forma, é ruim, mas pode ser positivo se conseguimos repassar esse conhecimento para outras pessoas. Como diz Mao Tsé Tung, é uma centelha que vai incendiar toda a pradaria, comenta outro integrante do coletivo, o estudante e rapper João Victor Costa Medeiros, 17, que atualmente mora no Santos Anjos, também na Zona Leste, mas residiu até os 12 anos no Santa Cândida.
Estar no coletivo é minha maneira de contribuir com o grupo do qual faço parte. A gente valoriza o que é nosso, mostrando que nem só a cultura do asfalto é a que vale. Posso morar em um bairro de classe média, mas meu coração está aqui, afirma a funcionária pública Elaine Silva Damasceno, 45, moradora do Manoel Honório, Zona Leste. Para ela, o trabalho de formiguinha, sem verbas, mas insuflado pelo ânimo de seus integrantes, que se dedicam à proposta no tempo que lhes resta, tem servido para fortalecer um discurso de resistência. Conforme Adenilde, a consciência do presente, mesmo que dolorosa, desperta para as utopias do futuro, essa sim capaz de transformar. Moramos na periferia, somos negros, sofremos de violências constantes causadas pelo sistema capitalista, pela mídia hegemônica que propaga apenas os valores eurocêntricos. Nosso coletivo tem o papel de desnudar essa realidade. Como diz Mano Zói, ‘a Armadilha do Gueto serve para desmontar as arapucas que o sistema arma para nós’, explica a senhora de voz doce, gestos contidos e lembranças fartas, sempre orgulhosa e confiante dos tesouros escondidos nas vielas de um bairro há poucos quilômetros do Centro da cidade.
Consciência como arma
Sempre calado, o grande observador Mano Zói, 29, morador do Santa Cândida e idealizador da banca Armadilha do Gueto, entusiasma-se ao falar dos projetos do Vozes das rua para 2014. Apesar de jovem, o coletivo criado no início do ano passado já produziu diversos eventos pela comunidade e pela cidade, entre eles o Festival de rap vozes da rua, que ganha sua segunda edição este ano. O Feijão de Ogum, feijoada precedida pela discussão da cultura africana e das intolerâncias religiosas, e Agosto negro, divulgação em escolas da história do continente africano, também serão realizados em 2014, bem como o primeiro sarau da comunidade e a primeira batalha de b-boys. Da mesma forma que fizeram no último ano, trazendo a Juiz de Fora o rapper Eduardo, que lançou sua biografia na Escola Municipal Santa Cândida, o coletivo pretende trazer agora o rapper Gog, um dos grande ídolos da comunidade hip-hop.
Conhecido como o poeta do rap, Genival Oliveira Gonçalves, o Gog, mora em Brasília e tem no currículo nove discos e um DVD lançados. Dono de um discurso incisivo, que põe o dedo na ferida da opressão vivida pela periferia, o artista é exemplo do trabalho feito a partir da consciência de si e de seu lugar no mundo, sempre desejoso de que bons ventos soprem. Em Brasil com p, uma de suas composições presentes no último álbum, Cartão postal bomba!, Gog é direto, cruel até, mas verdadeiro: Pelas periferias praticam perversidades parceiros/ Pm’s/ Pelos palanques políticos prometem prometem/ Pura palhaçada/ Proveito próprio/ Praias programas piscinas palmas/ Pra periferia/ Pânico pólvora pa pa pa.