Muitas vozes fora do Centro
Eles não estão nos teatros do Centro da cidade e nem nos museus. Estão onde também se encontram estatísticas que alarmam os especialistas, desafiam a polícia e intrigam o Estado. Estão na invisibilidade de não fazerem parte dos números cruéis e crescentes de Juiz de Fora – em 2013 foram contabilizadas 139 vítimas de mortes violentas, e, nos primeiros 20 dias de 2014, seis assassinatos já foram cometidos, segundo levantamento realizado pela Tribuna com base nas ocorrências policiais.
De acordo com os agentes culturais moradores da periferia da cidade, entrevistados para a série "A voz da periferia", que começa neste domingo, o objetivo da arte que fazem está, justamente, na reivindicação de visibilidade e voz. Afinal, eles fazem parte de uma Juiz de Fora que também é rua e também é morro. Uma cidade que é Murilo Mendes e também MC Hattori, com seu "Detalhes": "Será detalhe mais um filho de uma mãe solteira que carrega o peso/ da sua família inteira na farda/ Detalhe eu sei que num foi, me tornar MC/ E fazer poesia varando as madrugadas".
Se por periferia entende-se a região mais afastada do Centro, o que dizer desse lugar numa cidade cuja área urbana é de cerca de 500km² e o Centro corresponde a apenas 0,75km²? Os dados, extraídos do Anuário Estatístico da UFJF de 2006 e divulgados pela Secretaria de Política Urbana da Prefeitura, apontam distâncias curtas, capazes de colocar essa periferia a meros 15km do Centro, como é o caso de Benfica, considerado um dos mais longínquos.
Apesar de se mostrarem ricas e amplas – como as periferias de São Paulo e Rio de Janeiro, onde estão importantes movimentos da literatura contemporânea brasileira e de outras expressões, liderados por pessoas como o poeta Sérgio Vaz e sua Cooperifa -, essas regiões em Juiz de Fora não desfrutam do mesmo prestígio. Convidados pela Feira do Livro de Buenos Aires, que acontece em abril, os poetas dos morros paulistanos hoje são respeitados e reconhecidos como intelectuais.
Dispersos pela cidade, os artistas que atuam prioritariamente na periferia buscam identidade própria, seja através do hip-hop, uma das principais culturas encontradas pela Tribuna, seja pelo funk, com seus discursos de afirmação, ou, até mesmo, na fusão de gêneros e estilos, criando linguagem singular, como é o caso da dança do passinho, um misto de samba, break e funk. "Esse movimento eu observo há mais tempo e vejo que tem crescido e alcançado uma identidade. Nosso calcanhar de Aquiles é criar uma rede, dentro do Sistema Nacional de Cultura, de apoio a essas iniciativas", afirma o superintendente da Funalfa, Toninho Dutra. "Tem muita coisa acontecendo, e queremos mapear esse panorama num censo cultural, para então crescer o apoio e o conhecimento sobre essas expressões", completa.
Opção de ir além
"Hoje existe uma ampliação dessa produção da periferia, que circula entre vários espaços. A pesquisa acadêmica ratifica o que boa parte das pessoas já sabia há muito tempo, que é a compreensão da qualidade, da legitimidade dessas culturas periféricas. Nada mais natural que isso aconteça", comenta o escritor e mestre em ciências sociais Tiago Rattes, apontando para o crescimento e fortalecimento dos interesses das pesquisas universitárias por esse universo tão particular. "Não temos mais tempo a perder com diferenças sociais. Se você veio de uma família abastada, do Centro, não há problemas, e isso é interessante porque a gente pode trocar informações. Da minha história que veio do gueto e da sua que não veio. Assim a gente se prepara. Essa troca de vivências serve melhor para representar. Não é cultura do gueto, é cultura. Quem tem em mente o mesmo ideal e a mesa consciência pode morar em qualquer lugar. O morro não pode servir de plataforma simplesmente", discursa Aice, rapper e produtor cultural respeitado na cidade por sua longa trajetória no movimento hip-hop.
Para o rapper Marcos Constantini, morador do Santa Cândida, Zona Leste de Juiz de Fora, a cultura é a única forma que a sociedade tem de reverter os números ruins das estatísticas. Prova disso é sua própria vida. "Morei na rua, comi do lixo e hoje sou muito mais do que era antes. A cultura me deu a opção de ir além. Quando entrei para a banca Armadilha do Gueto, eu levantei. Hoje moro numa casa inacreditável. Tenho um quarto separado só para fazer as coisas do rap, tem teclado, tem tudo para a gente desenrolar", conta. "Sou pedreiro, pintor, bombeiro hidráulico, ou seja, faço um montão de coisas para pagar as contas, porque, ainda, o rap não me dá essas condições", lamenta. Sandrinho dos Primos, considerado o maior dançarino do passinho na cidade e morador do Milho Branco, na Zona Norte, também espera chegar longe. "Quero chegar no topo, quero ser reconhecido e poder ajudar os jovens, tirando-os da rua e trazendo-os para o mundo da dança. Quem sabe ser professor", almeja.