Mulher-grama
“O que é aquilo ali?”, pergunta um estudante a outro. “Gente, que nervoso!”, grita uma vendedora, na porta da loja onde trabalha. “Deve ser para chamar atenção de alguma coisa de prevenção da Mata Atlântica”, sugere uma jovem a sua amiga. “O que é isso? Propaganda do prefeito?!”, questiona um rapaz à sua mãe. “Deve ser coisa do Partido Verde. A propaganda é boa, né?!”, comenta um senhor a outros quatro senhores numa roda de amigos. Pequena e magra, com seus cabelos negros escorridos e olhos atentos, uma senhora acaricia o alvo das dúvidas. Apalpa a vestimenta de grama sintética que a artista visual Maicyra Leão usa. Em seguida, pega um regador com as mãos e molha aquele ser de folhas verdes falsas. Seu nome é Francisca de Resende, ela diz, complementando ter 65 anos e ser aposentada. “Você está acompanhando?”, pergunta. Ao receber um aceno afirmativo, diz: Então vamos juntos!”. Por um extenso trajeto, a idosa acompanha Maicyra num evento tão desconfortante quanto inebriante.
“Experimentos gramíneos” – performance que a artista sergipana apresentou em Juiz de Fora ontem e ganha debate nesta terça, às 19h, na programação do projeto Palco Giratório, do Sesc de Minas Gerais – sensibiliza. Diante do Cine-Theatro Central, uma mulher segura nos braços de Maicyra e questiona o evento. A artista silencia. Rapidamente, homens que se postavam próximos, sentados a uma mesa com panfletos de um candidato a vereador, fazem troça dizendo que trata-se do político. A artista mantém-se calada. A mulher, então, dispara: “Não sei o significado, mas está de parabéns!”.
Tarefa cumprida, Maicyra. Seu exercício, iniciado no Parque Halfeld e terminado, após um passeio de ônibus, na sede do Sesc, havia instigado, tanto quanto intrigado. A indiferença de alguns passantes, que nem sequer olhavam a mulher toda coberta por uma grama sintética, também conferia sentido ao ato que dizia sobre a ecologia, como a erva daninha que insiste em brotar entre o cimento, mas também dizia sobre o tempo veloz, de poucas observações e envolvimentos.
“Imaginei que eu precisava agir representando essa grama que invade o espaço do concreto construído. Junto a isso veio a ideia do lugar dos anônimos. As pessoas atravessam, resolvem seus problemas e, ao mesmo tempo, quase não se veem. Sou essa imagem-estímulo na tentativa de fazer florescer diálogos, opiniões. Não falo, não converso. E com o tempo de contato as pessoas passam a desenvolver seus próprios discursos. Cada um desenvolve sua narrativa e gera sua discussão”, comenta a artista de 33 anos, dez deles interpretando gramas.
Atriz e diretora teatral por formação, Maicyra poderia ter apostado em linguagens tradicionais para seu discurso. Optou pela arte do impacto direto. E reto. “Gosto do lugar do não saber o que é aquilo. Poderia ir pelo teatro, mas não teria o espaço de não saber o que é aquilo. A performance é múltipla e abre a chance de várias interpretações, o que faz com que o publico tenha uma autonomia de dizer o que é aquilo. Quando a pessoa sabe que é teatro, lida como se fosse ‘uma mentirinha’. Esse lugar da vida e da arte é muito próximo na performance”, diz.
Efeitos colaterais
Ao ver a artista deitar-se no chão do Calçadão, uma criança corre para pegar o regador e aguar a mulher-grama. O instrumento cheio de água parece pesado demais para o pequeno, e a artista se apressa em ajudá-lo. A cena, portanto, passa do bizarro ao afável em segundos. Todo o trajeto que Maicyra Leão faz, num andar trôpego e vagaroso, parando para aguar os pés, ocorre nos opostos. “É engraçado e é bonito. Fica no meio do caminho. Esse contraste, essa convivência me agrada. E é uma imagem bastante simples, o que também mobiliza as pessoas”, aponta a artista.
“Nos últimos dois anos, percebo que o celular é algo que posso prever. Muitas pessoas querendo fazer selfie comigo. Agora, com o Pokémon GO as pessoas passaram a brincar. Nunca imaginei que ela me oferecesse risco de vida. E já vivenciei isso e me surpreendeu, porque me despertou o olhar do espaço público como o lugar do risco e não do controlado. Não falo em segurança pública, mas do incômodo. A performance tem o poder de incomodar e trazer sentimentos limítrofes”, discute Maicyra, que vivenciou abraços, mas também sustos.
Certa vez, um passante fingiu estar filmando, enquanto outro fingiu-se repórter. Em outra ocasião, quiseram despi-la, para ver quem está por trás. Numa favela, foi confundida com um bandido e sofreu ameaças. Em Belo Horizonte, recentemente, uma mulher acompanhou o caminho inteiro chorando. “Foi bem tocante. Ela abraçava e dizia que acreditava nisso”, recorda-se. “Entro num estado de tentar me conectar com forças extremas, e algumas pessoas relacionam isso a algo religioso, político ou à loucura. Essas reações colaterais é que criam a obra de arte”, afirma.
Para a artista visual e professora do Instituto de Artes e Design da UFJF Letícia Bertagna, uma das espectadoras, o domínio de Maicyra diante de um espetáculo tão imprevisível é o que dava ainda mais beleza ao momento. “O que mais me interessava era ver a reação das pessoas. Acho interessante esse curto-circuito acontecendo. Causa estranhamento. Ela sabe fazer a relação entre movimento e pausa. O jeito de convocar não é interpelando, mas fazendo as pessoas chegarem até ela”, destaca Letícia.
Superexposição verde
De um Nordeste que pouco a pouco vai se afirmando vigoroso na cena contemporânea das artes visuais brasileiras, Maicyra Leão filia-se à nortista Berna Reale, que sai pelas ruas de Belém do Pará questionando o que o cubo branco acaba por amenizar. A proximidade, pele com pele, talvez seja o grande trunfo da linguagem. “Queria que a pele estivesse visível, para que as pessoas vissem que há humanidade ali. A grama sintética faz ver a pessoa. Elas veem meu cabelo, meus olhos. Ao mesmo tempo, sou uma pessoa-grama”, diz a artista, recusando complexos motivos políticos num ato político por si só ao abraçar a rua e acreditar nela.
“O único sentido político é trazer outro tipo de abordagem estética para a rua, para as pessoas que estão mais habituadas com a linguagem da TV e da publicidade, que são massivas”, pontua. “De alguma forma eu queria sensibilizar as pessoas. Aos poucos, na minha carreira, fui desenvolvendo outros trabalhos, mais aprofundados, numa tentativa de visualizar alguma transformação social. Alguns trabalhos têm um toque mais efêmero e outros possuem o lugar do agir na formação. É difícil, porque é como ver uma peça de teatro. O que lhe garante que as pessoas vão se transformar? O quadro pode tocar, mas como a pessoa vai mudar não há como medir.”
Fatalmente, “Experimentos gramíneos” pode soar fugaz para alguns e profundamente iconoclasta para outros. Uma característica própria da performance, espaço sem uniformidades. “Tem uma fala da Marina Abramovic, que é um ícone da performance, na qual ela fala da expressão como uma Fênix. A performance tem muitos ciclos de produção. Nos últimos anos, tenho me sensibilizado menos. Como ela traz muitas e múltiplas questões possíveis, temos trabalhos muito bons em discurso, mas que na ação não mobilizam tanto”, comenta.
“Tenho achado a performance um pouco desgastada, por que abriu-se muito ao discurso de que tudo pode. Isso fez com que ficasse perdido o lugar da ruptura, da força de transbordar certos limites”, pontua a artista, plena no domínio da rua que lhe abre como palco. “Como artista não tenho nenhuma medida para avaliar o nível de transformação que gero. Percebo que algumas pessoas são tocadas, mas para outras é um acontecimento muito raso. Esse é meu grande incômodo artístico.” E esse talvez seja, para todos, o grande incômodo. Mergulhar ou não na grama?!
“EXPERIMENTOS GRAMÍNEOS”
Debate nesta terça, às 19h
Sesc Juiz de Fora
(Av. Barão do Rio Branco 3090)