Murilo em traços e cores
O Museu de Arte Murilo Mendes (Mamm) inicia as celebrações dos seus dez anos de existência levando a obra do poeta e escritor juiz-forano para o universo das histórias em quadrinhos a partir do próximo dia 10, quando será aberta a exposição “Transmuriliana”, com trechos de obras do artista transpostas para a nona arte por meio de traços, cores e experimentações de 21 artistas locais e de vários pontos do país. A mostra, que fica no local até 10 de maio, também terá expostos os trechos originais acompanhados dos áudios gravados por dez artistas de Juiz de Fora.
Entre os quadrinistas convidados, há nomes locais como Carmina Usher, Lu Freesz, Paula Januzzi e Manzanna, e outros mais conhecidos no cenário das HQs nacionais: Mario Cau (melhor desenhista de 2014, segundo o Prêmio Angelo Agostini), Walter Pax e Gazy Andraus, que vai apresentar a palestra “A arte poética das histórias em quadrinhos” no próximo dia 25, no próprio Mamm. Segundo o curador da mostra, Thiago Berzoini, “Transmuriliana” é resultado da ideia de unir os quadrinhos ao trabalho do criador mineiro e deve-se à interface de sua obra com as artes em geral. “A própria obra literária tem esse diálogo: ela é muito visual, e ao convidarmos esses artistas temos a oportunidade dessa ‘transmidiação’ da obra dele através de várias plataformas. Podemos abrir o museu para esse diálogo, pois as histórias em quadrinhos foram marginalizadas e hoje são consideradas refinadas. Esperamos trazer um público também não tão ligado às artes e que descubra, pelos quadrinhos, o potencial do museu”, diz Thiago.
Para a exposição, Berzoini leu diversos títulos de Murilo Mendes, entre eles “Poliedros” e “Convergências”. Depois, foi selecionando os textos de acordo com os artistas e realizando os convites. “Os quadrinhos foram meu objeto de pesquisa, então conhecia o trabalho deles. Enviei as obras para leitura, e eles ficaram empolgados com o projeto. Acredito que houve um casamento entre os quadrinistas e o que foi sugerido a eles, que tiveram toda liberdade para adaptar”, conta. “Tem muita coisa bacana, com todo tipo de técnicas. Em ‘A bola de cristal’ (Guilherme Batista), a leitura do artista foi uma guerra nuclear, uma coisa inusitada. Quando li o poema não tive essa imagem. As ideias da guerra, da bomba, que vieram dele, foram muito fortes.”
Entre os convidados, está a quadrinista e ilustradora local Carmina Usher. Ela, que começou a criar suas tirinhas em 2011, conta que foi contatada pela curadoria graças a sua participação no coletivo carioca “Mulheres nos quadrinhos”, que já tem dois livros publicados. “Fui convidada para adaptar o poema ‘O copo’. Como meu trabalho é mais livre, espontâneo, pude fazer trabalho de acordo com a poesia proposta”, afirma a artista, fã de cartunistas como Laerte e dos irmãos gaúchos Fábio Moon e Daniel Bá, da série “10 pãezinhos”.
Outra artista de Juiz de Fora, a ilustradora Lu Freesz havia sido convidada, a princípio, para criar uma caricatura de Murilo Mendes para a exposição. Quando soube da finalidade da obra, ela não pensou duas vezes: também quis participar como uma das artistas a adaptar a obra do mineiro. “Aceitei de primeira fazer a caricatura, porque achei o máximo ‘caricaturar’ uma personalidade tão importante para a cidade. O Thiago me falou sobre o que seria a exposição, e fiquei com vontade de participar também. Eu havia comprado o “Convergências” no ano passado, e adaptei um poema curto, ‘A corda’, conta a ilustradora.
Fio narrativo
“Transmuriliana” é dividida em quatro temas (masculino, feminino, natureza e mística) para, de acordo com Thiago, fazer um apanhado desses arquétipos em particular. “O público poderá perceber que essa seleção vai permitir uma ordem de leitura que vai ‘conversando’, formando uma narrativa, mesmo entre livros diferentes. Como em dois poemas que têm uma mulher com o mesmo nome, Berenice. É um fio narrativo e às vezes imagético da obra do Murilo.”
A programação em comemoração aos dez anos do Mamm não vão parar na mostra, adianta Thiago Berzoini. “Teremos outras exposições ao longo do ano, com outras abordagens. A próxima mostra está em fase de organização e será com obras já expostas anteriormente no museu, que tratem do trabalho do Murilo Mendes. Temos outras ideias ainda em planejamento”, diz o curador, adiantando que haverá um catálogo virtual de “Transmuriliana”, lançado posteriormente.
Quadrinhos, expressão da arte
O ilustrador Gazy Andraus não é apenas ilustrador: entre as inúmeras atividades ligadas à nona arte estão a criação da disciplina de HQ e Zine na FIG-Unimesp (Centro Universitário Metropolitano de São Paulo), o doutorado em Ciências da Comunicação pela USP (Universidade de São Paulo) e a atividade de pesquisador do Observatório de HQ da mesma instituição. Responsável pela palestra que será realizada na abertura da mostra, ele acredita que a valorização dos quadrinhos teve aumento significativo nos últimos dez anos e até um pouco mais.
Para o ilustrador, ações como a do Mamm são de grande importância para a valorização da nona arte. “Elas valorizam as histórias em quadrinhos porque as colocam em um museu de arte e, paralelamente, promovem o mesmo pela cultural nacional, indo do regional para o geral. Em várias áreas, essa cultura é muito limitada historicamente pelos que foram eleitos pelo sistema acadêmico nacional, que não valoriza escritores como o Murilo”, teoriza. “Eu moro em São Vicente (SP), e nunca se falou de Murilo Mendes na escola. A cultura em geral no Brasil delimitou uma disposição pequena, e o mesmo ocorre nas mídias, como jornal, televisão, internet. Vejo essa exposição também como um alerta de que há muito a ser descoberto no país em varias áreas.”
Voltando à valorização dos quadrinhos em particular, ele acredita haver uma visão bem melhor atualmente, por parte da sociedade e dos responsáveis pela educação, em relação aos quadrinhos. “Vivi muito isso (o desconhecimento do valor artístico) nos anos 80. A sociedade ainda não conhece muito bem as HQs como uma expressão artística, assim como a cultura em geral, por culpa de contingências educacionais, políticas, mas a iniciativa do museu ajuda na divulgação de que quadrinhos são arte. Há países como a França com museus dedicados aos quadrinhos”, destaca Andraus, lembrando que muitos artistas conseguem, hoje, publicar suas obras por meio de editais, com tiragens que chegam a alguns milhares de exemplares. “Temos autores que fazem trabalhos rebuscados, com forte inspiração local, que ajudam a criar não só novos leitores, mas também futuros criadores.”