Os tempos sempre são de guerra
Alfinetes são comuns no Divulgação. O grupo teatral que prepara seu próprio figurino sempre alfinetou o próprio tempo. “Cancioneiro de Lampião”, a primeira montagem da companhia, em 1966, com música idealizada e executada por Sueli Costa, não se bastou na história de Maria Bonita e Virgulino Ferreira da Silva. Morria com eles, na encenação, as crendices populares, mas, como a força do cangaço, ressurgiam como símbolo de resistência e esperança. “Romeu e Julieta”, última das criações do grupo, lança mão da tragédia de Shakespeare para falar de uma sociedade partida ao meio, dividida em seus anseios e certezas. Para cada aflição, um alfinete.
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“Temos um plano de visão. A gente luta porquê? Sou jornalista, então luto pela verdade”, diz o diretor, ator e dramaturgo José Luiz Ribeiro, professor dentro e fora do palco. “O Zé Luiz não consegue se desvincular de um inconformismo. Mas nem tudo é exatamente político. E nada é gratuito. Como o teatro, que não é gratuito e tem sempre algo em que vai se esbarrar e incomodar”, confirma a atriz Márcia Falabella.
Autor de “Cancioneiro de Lampião”, o dramaturgo cearense Nertan Macêdo encantou-se com a interpretação da trupe juiz-forana e tentou ajudá-los na estrada. Elogiou o grupo com um general, que se compadeceu com a falta de sede dos atores e ofereceu o casarão secular do Círculo Militar, na Avenida Rio Branco. Mas era 1968. Como usar alfinetes?
Era tempo de despedida de um bravio Martin Luther King, assassinado pelo conservadorismo que crescia a passos largos mundo afora. Era tempo de uma Primavera de Praga, de uma França em protestos, de uma evolução da ditadura militar brasileira, culminando com a instituição do Ato Institucional nº 5, com todos os seus cerceamentos. Era o ano que não terminou, e o Círculo Militar era o único espaço que restava.
“Levamos uma paulada da esquerda: Como eles vão fazer García Lorca no Círculo Militar?”, recorda-se José Luiz, que sacou seu alfinete, forçadamente e estrategicamente mais sutil, e colocou frases do dramaturgo espanhol, reconhecido socialista, logo na entrada do lugar. “Montamos um palco em cima do tablado do exército, colocamos cortina, o pessoal trocava de roupa no vestiário da piscina. Foi um sucesso”, lembra o diretor, que conseguiu “gritar” até mesmo na casa do inimigo.
“A gente não faz partidarismo. Nosso trabalho é o teatro, que é político por natureza”, atesta Márcia. “A gente precisa ter uma visão holística do tempo, o que é político, mas não partidário. Precisamos saber a importância de ver os erros”, concorda José Luiz, para logo indignar-se com a política atual, seja ela federal, estadual, municipal ou acadêmica, todas alvos de suas recentes peças.
“Fiquei oito meses estudando a vida do Fernando Henrique Cardoso para fazer ‘O príncipe Rufião’ (1998), até descobrir que a família dele era ligada ao Duque de Caxias, que, por sua vez, era ligado a Joaquim Silvério dos Reis”, conta o dramaturgo, que ao mesmo tempo que se volta indignado para a esfera do poder, alfineta a sociedade contemporânea em suas mais cruéis facetas.
Iluminar com resistência
Se “Diário de um louco”, de 1969, mostrava-se atual ao criticar uma “sociedade desumana, que não permite a realização dos indivíduos”, segundo as palavras do folheto da época, “Cuidados de amor”, de 2014, revolta-se contra a mesma desumana sociedade que recusa seus velhos. Para cada dia, um alfinete com o desejo de fazer acordar.
Qual Brasil o Divulgação retratou? “Todo. Nós pusemos mordaça nos anos de chumbo, em ‘Electra’, em dezembro de 1968, AI-5”, responde o diretor. O que mudou? “Naquele tempo as pessoas entendiam”, diz o homem que se fez autor sem dizer adeus ao jornalismo. “Os textos dele são muito críticos e muito conectados com a realidade que vivemos”, aponta Márcia Falabella.
Para o cronista do teatro, aos 50 anos de Divulgação, iluminar o palco exige um tanto de resistência não apenas do fazer, mas do discurso. “É o que o Humberto Eco fala: o Facebook deu voz à ignorância, não há filtro. Há um sofrimento enorme, as pessoas estão perdendo o humor, estão partindo para o tapa em dez minutos. Estou cada vez mais calado, tento não reproduzir nada no Facebook. Isso é uma censura, para quem faz arte é o que há de pior no mundo. O coração fica amarrado”, contesta José Luiz.
“Vejo um momento de intolerância. É uma loucura, não podemos falar nada. Não podemos falar da cabeleira do Zezé, nada mais. Tem que acabar com a música popular brasileira, então, porque existe um espaço em nossa cultura que se faz através do riso, e o riso é que segura a sociedade”, defende o dramaturgo, homem de regras, que vão da bilheteria à boca de cena, certo de que cada gesto representa um passo em busca de um modus operandi social ideal.
“Ética é uma palavra que uso. Ética como um conjunto de regras que permite um funcionamento. Aqui chegamos na hora, porque se temos que morrer às 21h, vamos morrer às 21h. O público sabe disso. Hoje a sociedade foi abrindo mão dessas coisas, e isso que aprendemos aqui levamos para todos os lugares”, emociona-se Márcia Falabella, conhecedora de que todos os alfinetes espalhados pelo Divulgação sonham com um tempo onde as guerras serão passado, apenas.