Outras ideias com Marcio Assis
Em solavancos, o carro segue pela estrada íngreme e rodeada de árvores e arbustos. Enquanto subimos e subimos, Marcio Assis fala sobre o bairro e o caminho, antes uma trilha, passado de seu avô para seu pai e, enfim, para suas mãos. “Minha raiz é muito profunda com o vale da Floresta”, conta, momentos antes de chegarmos ao alto de uma imensa montanha. Minas, com seus mares de morros, é um horizonte. Pequenos lagartos correm pelo mato, gaviões fazem voos rasantes, e a todo momento ouve-se o som de insetos entre as folhas, num constante agitado. É mais perto do céu que o fotógrafo, com passagem pela Tribuna no início dos anos 1980, decidiu fazer seu paraíso.
“Meu domicílio espiritual deve ser onde nasci. Foi assim que começou a história do Céu das Estrelas. Cedi a terra que tinha e resolvi seguir essa caminhada”, recorda-se Marcio, referindo-se ao templo da doutrina do Santo Daime em Juiz de Fora, cujo espaço que ocupa tem estreita relação com seu histórico familiar. A avó, logo após a morte do marido, doou a metade da herança para os seis filhos. “Eram a fazenda, a fábrica, as terras, ainda havia um banco na cidade e a Companhia Mineira de Eletricidade. Era um pequeno império”, enumera. “Com a outra metade, ela construiu, na Avenida Rio Branco, em frente à Sampaio, a igreja das Sacramentinas (o Cenáculo). Foi para São Paulo, ordenou-se freira e passou o resto da vida ali”, acrescenta, apontando a mulher responsável por, segundo ele, sua principal característica: ser um “buscador”.
Aos 64 anos, pai de dois filhos e no segundo casamento, o homem de cabelos encaracolados e grisalhos passa a maior parte de seu tempo na pequena varanda para a qual deu o nome de Rancho da Lua. Com as memórias bem guardadas – “Já havia morado uns anos na Europa. Fui DJ em Nova York na década de 1960, assisti a Led Zeppelin no Madson Square Garden, no dia em que o Jim Hendrix morreu”, diz -, ele se dedica a desenvolver seu ponto no planeta. “É o lugar onde estou ancorando minha energia.”
Expedições
Em 1986, Marcio Assis pôs o pé na estrada rumo à Amazônia. Três anos de viagens e a certeza de que era preciso encontrar o indizível. Após passar pela Bahia e tomar contato com o chá ayahuasca, conheceu, na década seguinte, o Vale do Matutu, no Sul de Minas, onde morou por nove anos. Ao regressar para sua Floresta natal, o primo Fernando, que morou no Mapiá, coração da Amazônia e considerada a “meca do Santo Daime”, também havia voltado e estava disposto a fundar um templo local da doutrina cujo símbolo é a cruz de caracava. “Em 2011, procurei o Fernando e pedi licença dos trabalhos. Fui fazer o processo dos 21 dias no Portal Parvati, no sul do estado. Essa experiência me deu um upgrade espiritual”, pontua, contando ter passado todo o tempo em jejum, a primeira semana sem água. “Fui também ao Trigueirinho, da Comunidade Figueira. Ele é um canal que recebe orientações de dimensões muito elevadas e desenvolveu um trabalho, ao longo de 30 anos, que é bobagem querer descrever”, brinca.
Ritualístico
Com as chaves nas mãos, Marcio mostra o templo que ajudou a construir. Em formato hexagonal, com uma mesa no feitio de uma estrela bem no centro e fotografias dos pioneiros do Daime num pequeno altar onde também fica a bebida, o templo é simples, diferente dos complexos rituais. “Dentro da doutrina, basicamente, há dois trabalhos distintos. Um é a concentração, quando todos ficam sentados, quietos. Fala-se e canta-se pouco. No outro, é feito o bailado. Normalmente, ficam os homens à direita e as mulheres à esquerda, em filas”, relata. Os músicos se distribuem em volta e, dois pra lá e dois pra cá, os fiéis cantam hinos. “O ritual dá a segurança para adentrar um mundo novo e desconhecido”, diz, falando da bebida que mistura o cipó conhecido por mariri, a folha chacrona e água. “Ela é milenar, nativa da floresta amazônica, união de duas plantas entre as 80 mil variedades da região. Era a bebida ritualística que os incas usaram, e muito do conhecimento da cultura deles se deve ao uso do chá. No século passado, na década de 1930, ela veio à tona, e daí nasceram algumas religiões usando a bebida como veículo, uma delas é a doutrina do Santo Daime. Tem também a União dos Vegetais, a Barquinha e muitas outras. Passei por todas, mas sempre fui fiel ao Daime”, destaca.
Dai-me luz
Qual a coloração, pergunto. Terrosa, diz Marcio. O gosto, acrescenta, é amargo. Mas, o que vale, é o que provoca. “Trato-a como expansor de consciência. Tem todo um contexto que favorece a busca, abrindo canais que normalmente estão bloqueados. Dentro de um ritual, com a força da bebida, você adentra uma realidade. Para mim, esse mundo que a gente vive é uma grande ilusão. Essa bebida te aproxima da verdade absoluta”, explica, comentando o rogativo “Dai-me força, luz, amor…”, do qual surgiu o nome da doutrina. Entusiasmado, ele revela que o feitio do líquido, estudado cientificamente por seus efeitos cerebrais (alguns chamam de alucinógenos), foi iniciado na última terça e deve terminar, apenas, neste domingo. “É uma alquimia maravilhosa. São cinco panelões de 90 litros, que exigem um trabalho direto.” Com a quantia produzida essa semana, o templo se mantém até, aproximadamente, junho de 2015.
Ancoradouro
Dizendo-se “desobrigado” dos trabalhos com o Daime, Marcio segue por outros caminhos. “Foi vindo muito claro um chamado para eu firmar meu ponto, um lugar que seja ecumênico, aberto a todas as linhas que trabalham com a luz e com o bem. Fiz o Rancho da Lua, que é um lugar para ver a lua nascer, dentro de uma linha mais xamânica”, conta. Pergunto, então, sobre os cristais que circundam seu porto no topo da montanha. “Foi um pequeno ritual para pôr essas pedras aqui. Levou mais ou menos uns 20 dias. Pedi licença à minha mãe, depois ao jardim dela e só então trouxe e lavei para tirar a carga que elas acumularam. Tomei a bebida, acendi meu fogo, fiz as minhas preces e fui colocando uma por uma, com a intenção de que elas energizem uma luz pura nesse lugar. As coisas, pode crer, funcionam assim, a gente é que não leva a sério”, afirma. Hora de ir embora, descer a montanha. O mistério prevalece. Em solavancos, o carro segue em silêncio.