Reinações dos Bracher
Eles entraram na sala, pisaram nos desenhados ladrilhos hidráulicos, observaram as estrelas de E.V.A. (etil vinil acetato) coladas na escadaria de madeira, olharam-se no espelho repleto de fotos de família, viram os muitos quadros que se estendem do chão ao teto e as louças pintadas à mão na década de 1950. Também puderam sentar nas poltronas do pequeno espaço, diante de uma reduzida, porém volumosa, estante com livros de arte. Eles, os mais de 300 mil espectadores que já passaram pela exposição “Bracher – Pintura & permanência”, cuja turnê pelos centros culturais do Banco do Brasil se encerra em julho, após passagem por Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro (atualmente está e Brasília), experenciaram um pouco da casa que viu esboços ganharem cor e forma. Diminuta como todos os outros muitos cômodos da casa, a sala do Castelinho dos Bracher (Rua Antônio Dias 300) preserva a essência de um passado intelectual efervescente e guarda, nas paredes, móveis e portas, o presente que o tempo deixou deteriorado.
No momento em que o lugar ganha visibilidade nacional, histórica em seu quase um século de vida, seu futuro ainda é incerto. Após a morte de seus dois últimos moradores, Nívea Bracher, em dezembro de 2013, e seu irmão Décio, em janeiro do ano seguinte, a casa não foi mais ocupada. Vitimada pela ação do tempo, desde então viu sua situação piorar, já que o uso, por muitas vezes, sanou pequenos problemas, como a varanda de entrada, reconstruída há alguns anos, após desabamento.
“Sou bastante apegado a essa casa, porque foi nela que passei toda a minha infância, mas reconheço que é impraticável zelar e tomar conta”, emociona-se Paulo Bracher, irmão de Carlos, Celina, Décio e Nívea. Aos 80, o único familiar a morar próximo ao lugar tenta visitar o cenário dos tempos de criança todos os dias e se entristece ao perceber que o relógio tem sido muito mais veloz do que seus pequenos gestos.
Interesse em xeque
“Já estou começando meus acenos finais, faço 75 este ano. Meus filhos e sobrinhos seguiram suas vidas. Achamos que o destino é entregar para um órgão público. Aquele espaço deve ser levado à frente, permitindo o acesso de todos. Nosso desejo é passar para a UFJF. O histórico daquela casa está ligado a um momento da cidade. Era um espaço aberto, agregador. Arte e cultura eram o grande lenitivo. Era uma casa das ideias e dos conceitos”, reflete Carlos Bracher. Segundo ele, uma conversa foi iniciada com o ex-reitor da universidade, Henrique Duque, em 2014, mas não houve prosseguimento. Em entrevista à Tribuna, em abril, o secretário estadual de Cultura, Angelo Oswaldo, pontuou a impossibilidade de o Estado receber e manter o imóvel, mas afirmou sua vontade em ver o mesmo ser repassado à federação.
“Estamos em um quadro de dificuldades, sem recurso, e comprar essa casa seria complicado. E não é simplesmente musealizar, mas ter um ateliê em sintonia com os outros espaços, o que envolveria a universidade. Não que eu queira omitir uma posição do Governo do estado, mas vejo como mais adequado”, disse Angelo. Apesar de reconhecer o valor da casa, material e imaterial, a pró-reitora de Cultura da UFJF, Valéria Faria, considera inviável a incorporação no momento, mas “adoraria ver esse espaço ligado mais intimamente aos cursos de artes e arquitetura da universidade”.
Museu vivo
A casa que agrupa duas famílias de indiscutível relevância para a escrita da história artística local, os Arcuri (que construíram e foram os primeiros moradores) e os Bracher (que deram fama ao espaço), está longe de ser um museu. Ainda que seja repleta de quadros – segundo a família possui mais de duas mil obras -, seu grande encanto está em cada canto, cada detalhe, que não esconde os vestígios dos artistas. Nívea fez, por toda parte, mosaicos de azulejos diferentes, além de pintar o teto e as portas dos cômodos homenageando os grandes nomes da pintura mundial, como Mondrian e Kandinsky. Aquela família, responsável pela abertura da Galeria de Arte Celina na Galeria Pio X, um dos principais pontos de encontro de intelectuais na década de 1960, vivia a arte dia a dia.
Foi o patriarca Waldemar, o marido de Hemengarda, quem aos poucos modificou o projeto inicial de Raphael Arcuri. Junto dos filhos, construiu uma nova torre toda com o telhado metálico e transparências, bem como o guarda-corpo do tal mirante, todo feito em ferro desenhado. Construído, originalmente, com fachada voltada para a Avenida Getúlio Vargas, a casa conta, ainda, com ateliês e jardins na parte posterior. Em todos eles se espalham telas e pequenas intervenções artísticas. Os custos de manutenção são pagos com o rendimento proporcionado pelo aluguel do terreno ao lado, onde foi edificada uma torre de telefonia, mas não dão conta de garantir um futuro à altura do passado.
Espaço vulnerável
Portas, móveis e outras peças em madeiras sofrem com a ação de cupins. Ladrilhos hidráulicos perdem seus desenhos. Nas paredes, as tintas descascam, como nos tetos pintados por Nívea. São muitas as rachaduras na parte externa e interna do imóvel, que, ainda assim, apresenta-se limpo e cheiroso. “Uma restauração autêntica é muito onerosa. O que vamos fazer é o que está ao nosso alcance, como imunização das madeiras, troca de vidros e extinção das infiltrações”, afirma Marcelo Andrade, genro de Paulo, casado com Cecília Bracher. Ele, a esposa e a filha têm se dedicado, nos últimos meses, ao cuidado com a residência, para a qual planejam se mudar em julho. “Já iniciamos um processo de limpeza e recuperação de tudo. Nossa ideia é tomar conta até sabermos o rumo que será dado.”
Enquanto a casa não era ocupada, os herdeiros – Carlos, Paulo e os dois filhos de Décio – optaram pela instalação de um sistema de alarme, impedindo, assim, a ação de um assaltante que entrou recentemente no espaço dedicado aos documentos, revirando prateleiras, gavetas e pastas. O castelo está vulnerável – e não apenas o projeto arquitetônico, tombado pelo município em 1999, assegurando a preservação de fachada e volumetria. O interior do local, que também corre risco, reserva uma das mais grandiosas e completas coleções da história da pintura no século XX em Juiz de Fora. “É uma casa de uma grande existência, no sentido imaterial, mas também de enorme valor material, pelos quadros históricos que guarda”, reconhece Carlos Bracher.
Cenário para eventos
Em processo de inventariança, a porção de Nívea Bracher (25% da residência e 50% do lote vizinho) deverá constar em partilha ainda em julho, quando será iniciado o inventário de Décio, herdeiro (agora, seus dois filhos) ao lado de Carlos e Paulo. De acordo com Marcelo Andrade, o processo tem sido harmonioso entre todas as partes, o que demonstra, também, a possibilidade de a própria família gerir o espaço. “Não somos de grandes ambições. O convívio da nova geração é muito pacífico, com a tendência de manter a casa, como os pais fizeram. Meu grande medo é que, no futuro, ela não seja cuidada da forma que deveria, por pessoas que não possuem laços afetivos com o Castelinho. Acredito que a solução seria ter um museu com a réplica da casa, móveis e obras”, pontua.
Marcelo espera que, daqui a alguns meses, o lugar consiga receber pessoas para pequenos eventos e sessões fotográficas, aumentando, assim a renda do imóvel e permitindo restaurações efetivas. Existe, também, a possibilidade de que leis de incentivo destinadas à recuperação e manutenção da memória artística brasileira proporcionem tais ações. O castelo, onde reinou uma geração de artistas juiz-foranos e sempre manteve suas portas abertas, não pode se fechar e se calar. Merece estar vivo, não apenas nas telas em que foi retratado, mas na paisagem da cidade, vista em sua quase totalidade do alto da torre da Antônio Dias 300.