Sinônimo de boteco
É o olho do dono que engorda o gado. O ditado só esquece de dizer do brilho no olho, do entusiasmo, do sorriso enquanto fala. Não é mesmo seu Abílio Quintino Moreira? “O segredo do sucesso é o dono segurar, estar atento, ver tudo o que precisa. Eu é que trabalho na administração e sei do que falta. É muita coisa para ocupar o cérebro da gente. Acho que é por isso que até hoje tenho energia e saúde. Um boteco exige muita movimentação, atenção, e o raciocínio tem que ser bom, senão não dá conta”, diz o senhor de 71 anos, que há 48 anos chega às 8h no número 180 da Rua Fonseca Hermes, no Centro, para só retornar para casa por volta da meia-noite.
O Bar do Abílio lhe toma a vida. “Minha rotina sempre foi essa, de mais de 14 horas de trabalho por dia. Com essa idade toda, não sinto cansaço, não tenho nada, não tenho colesterol alto, pressão alta, nada disso. Tenho é ânimo para trabalhar”, fala o homem que mesmo aos domingos, quando a porta do estabelecimento permanece cerrada, segue para o lugar, após ir à missa com a esposa e antes do almoço em família. Faz pequenas ajustes, arrumações e cálculos, num ritual sagrado, como o dos clientes em relação ao seu bar. “Tem cliente fiel desde quando comecei. Pena que uns já foram embora. Mas vai sempre renovando.”
A mercearia
“Comecei com mercearia, era janeiro de 1969, mas meu intuito sempre foi vender umas cachacinhas, cervejas, fazer tira-gosto na hora. Durante o dia era só dona de casa. A mercearia vendia frutas, verduras, legumes, enlatados e empacotados. Depois das 18h, quando as donas de casa não entravam mais nesses ambientes, eu trabalhava em outro esquema. Fui cativando os clientes. Montava uma mesinha no canto, mas só com os amigos, com as pessoas que fui pegando mais conhecimento. Tinha um fogãozinho para fazer o tira-gosto e foi dando certo”, recorda-se Abílio. Em 1987 a Mercearia Colorado tornou-se Bar do Abílio, com o mesmo endereço e com o mesmo balcão, que antes servia de vitrine aos biscoitos e chocolates e hoje ampara copos de cerveja. “Mudei para bar no tempo do Plano Cruzado, que foi terrível para o Brasil”, comenta. Deu certo? “Já tinha dado. A clientela foi crescendo, e eu senti que a mercearia já não dava muito resultado, porque não tinha produto no mercado, tudo sumia”, lembra. Rapidamente o lugar tornou-se parada obrigatória para conhecidos e desconhecidos. Para clientes como o pintor Dnar Rocha (“Era meu amigo, vinha muito, dizia que ia fazer um quadro para mim, mas acho que não deu tempo”) ou como o ex-prefeito Tarcísio Delgado (“Ele saia da Prefeitura e vinha aqui. Era freguês de boteco para comer chouriço e fígado com jiló, não tinha assunto de prefeitura não”). “Sempre fui bem acolhido pelo povo daqui”, emociona-se Abílio, que patrocina uniformes para times de várzea mas não arrisca entrar em campo. É boêmio, toma cerveja. “Cachaça também. Quando vai dando a hora do almoço, tomo uma biritinha para ficar feliz. Bebo algumas cachacinhas de noite, antes de ir embora, para ficar feliz. Não bebo para ficar tonto, não”, ri o homem que dá nome e rosto para o Bloco do Abílio, que se reúne no dia 12 de fevereiro, a partir de meio-dia, no Turunas. Seu time e seu bloco são o bar.
O quartinho
“Sou lá de Piau. Nascido e criado nas montanhas da roça. Meu pai era empregado de fazenda, e a mãe tomava conta das crianças, porque somos sete irmãos”, conta ele, que só estudou até o quarto ano primário. “A vida é que me ensinou a viver o dia a dia.” Ainda adolescente foi para o Rio de Janeiro. No primeiro ano trabalhava das 2h da manhã até 9h, ajudando a empacotar e entregar os exemplares do Jornal do Brasil. À tarde trabalhava numa farmácia. Passados seis anos de sua saída de casa, o pai morreu. Era 1968 quando Abílio regressou, em dezembro, para Juiz de Fora, com o intuito de ficar ao lado da mãe e do irmão menor. “Como era o filho solteiro, vim embora tomar conta deles. Mas não sabia fazer nada. Aí resolvi alugar essa loja aqui, que estava desocupada, e montei uma birosquinha”, recorda-se o homem, à época um jovem de 23 anos. Os dias continuavam apertados quando, um ano depois, casou-se com Ângela. “Minha residência era aqui”, diz, apontando para os fundos da loja, onde hoje é o depósito. “O banheiro usavam os clientes e eu também. Tomava banho ali. Aqui, nesse quadradinho da entrada, era a cozinha”, mostra. Um tecido dividia a sala e o quarto. No lugar permaneceu por três anos, tempo para a primeira filha, hoje com 44 anos, nascer. “Quando nasceu a segunda filha eu já estava morando numa casa própria, próxima do Hospital Aragão. Meu movimento é bem satisfatório, dá para viver bem. Tem lá uma casa boa, com piscina, tem sauna, banheira de hidromassagem. Graças a Deus, minha mulher trabalha pra caramba e não depende de empregada, com 69 anos”, orgulha-se o avô de dois.
O boteco
“Aprendi a fazer por necessidade”, surpreende-se Abílio, referindo-se ao domínio da cozinha, que no bar fica por sua conta. Não sabe cozinhar? “Não sou bom, não entendo nada, não tenho formação nenhuma. Só sei fazer as porções que a casa tem para oferecer”, ri ele, pontuando que os pratos sempre são pensados junto dos ajudantes, principalmente de Adriano, funcionário há 15 anos, que estuda gastronomia atualmente. Mas, e o famoso fígado com jiló? É criação sua? “Foi uma freguesa minha que chegou, há muitos anos, falando: ‘Abílio, comi um fígado com jiló lá em São Paulo e você precisa ver que delícia!’. Mas jiló é horrível. Aí ela disse que era sem casca. Passado uns dias e ela chegou com jilózinhos e pediu para eu fazer para ela. Fiz a primeira vez e você sabe como é, né?! Botei para ela, que perguntou: ‘Cadê o jiló?’. Desmanchou tudo. Fiz uma, fiz duas, fiz cinco, até dar certo. Quando ela falou que ficou uma delícia, disse para eu oferecer para os outros. E pegou”, lembra. Pegou mesmo. “Em 2011 surgiu a Comida di Buteco, me convidaram para participar e não é que eu fui campeão com o fígado com jiló? Meu comércio cresceu e tive que arrumar mais espaço. Aqui do lado, fiz uma parceria com o dono do restaurante. Quando ele encerra o expediente dele, eu entro para usar o ambiente, pagando um aluguel justo, lógico. Em 2012 não é que fui bicampeão? Aí a casa cresceu mais, tive que contratar mais funcionários”, conta o homem que divide o trabalho com outros seis, além de um freelancer para as quintas, sextas e sábados, quando o outro lado da rua, onde funciona um estacionamento durante o dia, também recebe cadeiras à noite. Uma função que a filha acompanha a partir das 18h, quando assume o comando. Abílio fica junto. É o olho (e a vibração) do dono que engorda o gado. “Parar só na hora em que as energias acabarem.”